Paulo Emílio (crítico de cinema)
Paulo Emílio Sales Gomes[nota 1] (São Paulo, 17 de dezembro de 1916 — São Paulo, 9 de setembro de 1977) foi um historiador, crítico de cinema, professor, ensaísta e militante político brasileiro.[1] Foi figura central na fundação da Cinemateca Brasileira, na criação do Festival de Brasília e dos cursos de Audiovisual da Universidade de Brasília e Universidade de São Paulo, onde lecionou até o final de sua vida.
Paulo Emílio Sales Gomes | |
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Nome completo | Paulo Emílio Salles Gomes |
Nascimento | 17 de dezembro de 1916 São Paulo, SP |
Morte | 9 de setembro de 1977 (60 anos) São Paulo, SP |
Causa da morte | Ataque cardíaco |
Nacionalidade | brasileiro |
Cônjuge | Lygia Fagundes Telles |
Ocupação | ensaísta, historiador, crítico de cinema, romancista, militante político |
Prémios | Prémio Jabuti 1977 Ordem do Mérito Cultural (2008) |
Magnum opus | Três mulheres de três PPPês |
Paulo Emílio transformou-se também em defensor ferrenho do Cinema Brasileiro após uma conversão que chamaria de "descolonização" contra a cinefilia estrangeira. Sua defesa foi pioneira em favor de políticas culturais que sustentassem a produção cinematográfica brasileira, como o financiamento estatal. Sobretudo, sua influência como crítico de cinema e ensaísta inspirou os diretores do movimento cinematográfico brasileiro Cinema novo.
Ao longo de sua vida, teve contato com diversas figuras importantes: o escritor modernista Oswald de Andrade, o poeta carioca Vinicius de Moraes, o crítico literário Antonio Candido, o crítico teatral Décio de Almeida Prado, o grande crítico francês André Bazin, o diretor cinemanovista Glauber Rocha, o também crítico e professor Jean-Claude Bernardet, o diretor brasileiro Humberto Mauro, o produtor Ademar Gonzaga e a escritora Lygia Fagundes Telles, com quem foi casado.
Biografia
Paulo Emílio Sales Gomes foi filho do médico Francisco Salles Gomes e de Gilda Moreira Salles, que possuíam uma fábrica de tecidos em Sorocaba, interior de São Paulo. Durante o ginásio, já na capital paulista, foi colega de Décio de Almeida Prado, com quem posteriormente fundaria a revista Movimento (1935) e Clima (1941-1944). Sobre os cinco anos em que estudaram juntos, dentre 1929 e 1935 no colégio Liceu Nacional Rio Branco, Décio afirma: "Duas coisas nos aproximavam: a mania literária e o fácil riso da adolescência, de que possuíamos reservas inesgotáveis."[2][3][4]
Militância política
Ainda muito jovem, Paulo Emílio começou a participar da vida política e cultural da cidade de São Paulo. Foi filiado à Juventude Comunista e, característica que levou até o fim da vida, sua boa oratória transformou-o em figura importante do movimento estudantil paulista durante a década de 1930. Chegou a ser preso pela repressão de Getúlio Vargas após a Intentona Comunista de 1935. Entre dezembro de 1935 e 1936, Paulo Emílio esteve na Prisão do Paraíso. Depois, foi transferido para o Presídio Maria Zélia, onde, como passatempo junto a outros presos-políticos, escreveu sua única peça de teatro, "Destinos". A história trata, em três atos, das disputas entre os irmãos burgueses Carlos (estudante comunista) e Álvaro (viciado em cocaína), este interpretado pelo próprio Paulo Emílio, que também dirigira a peça. Após censura, o jovem foi reconduzido à Prisão do Paraíso em julho de 1936. Foi vizinho de cela da artista Pagu, também presa-política da repressão varguista. Em 10 de fevereiro de 1937, Quarta-feira de cinzas, Paulo Emílio e mais 16 presos cavam um túnel e fogem da Prisão do Paraíso. Três meses depois, enquanto fugia da polícia, partiu para Paris.[5][6]
Foi durante sua estadia na França que conheceu a fundo a Sétima Arte, graças a uma amizade desenvolvida com o físico carioca Plínio Sussekind, grande conhecedor de Cinema e que fundara em 1928 no Rio de Janeiro o primeiro clube de cinema do Brasil, o Chaplin Club (dedicado ao cinema mudo e que se dissolveria com a chega do cinema sonoro).[7] Enquanto ambos estavam em Paris, Sussekind apresentou Paulo Emílio a obras clássicas, como o cinema silencioso de Charlie Chaplin e o Cinema soviético, principalmente Outubro (filme) e O Encouraçado Potemkin, de Serguei Eisenstein. Também nesse período, além de descobrir o Cinema, entra em desilusão com o comunismo ao descobrir os Processos de Moscou, que expunham a dura realidade da União Soviética de Josef Stalin. Desde então, Paulo Emílio desfiliou-se do Partido Comunista Brasileiro, embora tivesse mantido suas tendência de esquerda durante toda sua carreira.[8]
Revista Clima
De volta ao Brasil, em 1940, matriculou-se na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), onde conheceu os colegas Antonio Candido, Rui Coelho e Gilda de Melo e Sousa e Lourival Gomes Machado. Os estudantes, ao lado de Décio de Almeida Prado, fundaram em maio de 1941 a Revista Clima, publicação de origem acadêmica de grande influência na intelectualidade paulistana. Junto com Antonio Candido (que falava de literatura) e Décio de Almeida Prado (teatro), Paulo Emílio escreveu seus primeiros textos sobre cinema na Revista Clima. Os autores da Clima eram chamados por Oswald de Andrade de "Chato-boys".[9]
Simultaneamente, Paulo Emílio, junto com os "Chato-boys", funda o Primeiro Clube de Cinema de São Paulo, seguindo os moldes do clube carioca Chaplin Club, para discutir a arte cinematográfica após exibições caseiras de filmes. Em 1941, no entanto, devido à censura varguista, o clube é fechado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).[10][11]
Além disso, o período da década de 1940 foi bastante intenso para Paulo Emílio no que diz respeito à militância política. Participou da agremiação política Grupo Radical de Ação Popular e do jornal Frente de Resistência Popular, que teriam papel na fundação da União Democrática Nacional, em 7 de abril de 1945. No ano seguinte, parte novamente para Paris, mas desta vez como bolsista do governo francês.[9]
Jean Vigo e Cinemateca Francesa
Entre 1946 e 1954, em sua segunda estadia na França, Paulo Emílio foi frequentador assíduo da Cinemateca Francesa, mantendo uma amizade com seus criadores, Henri Langlois e Marie Merson. Aproxima-se de André Bazin, importante crítico francês que seria o grande influenciador dos cineastas da Nouvelle vague. Casa-se com Sonia Veloso Borges, cujo matrimônio seria rompido assim que voltassem ao Brasil oito anos depois.[6][12]
Sobretudo, trabalhou em uma ambiciosa biografia sobre o cineasta francês Jean Vigo (cuja morte precoce, em 1934, interrompeu uma carreira em ascensão) e seu pai, o jornalista anarquista francês Eugène Bonaventure de Vigo (conhecido como Miguel Almereyda, morto em prisão no ano de 1917). Com os textos sobre pai e filho, Paulo Emílio traçou uma visão completa da obra de Jean Vigo (que à época começava a ser reconhecido pela Cinemateca Francesa e pelos cineastas da Nouvelle vague), mas também o contexto sócio-político em que o jovem cineasta crescera.[13]
Publicado em território francês em 1957 e então sob responsabilidade do crítico André Bazin, a obra foi originalmente cortada pela Editora Seuil, que exigiu que Paulo Emílio priorizasse os trechos a respeito de Jean Vigo. O livro foi bastante elogiado, inclusive pelo jornalista da Cahiers du Cinéma e cineasta François Truffaut, que afirmou, em 1954, ser o "mais belo livro de cinema" que já lera:
Na estreia do Prêmio Armand Tallier, Jean Vigo foi consagrado, em decisão unânime da Association Française des Cinémas d'Art et d'Essai (AFCAE), o melhor livro de cinema do ano, superando Hitchcock, de Éric Rohmer e Claude Chabrol. À época, Paulo Emílio Sales Gomes não estava mais na França para receber como recompensa 50 mil francos. Abaixo, a íntegra da nota feita pela AFCAE, disponível no livro Jean Vigo (CosacNaify/Edições Sesc, 2009):
![](http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/1/10/Paulo_Em%C3%ADlio_de_Salles_Gomes_%281957%29.tif/lossy-page1-220px-Paulo_Em%C3%ADlio_de_Salles_Gomes_%281957%29.tif.jpg)
Cinemateca Brasileira
Em 1940, a fundação do Primeiro Clube de Cinema de São Paulo foi o embrião que originaria a Cinemateca Brasileira. Criado por Paulo Emílio junto com os "chato-boys", o Primeiro Clube realizava sessões caseiras de filmes. A iniciativa não durou muito devido à repressão da Era Vargas, sendo extinto no ano seguinte. Ainda assim, em 1946, com a deposição de Vargas e Paulo Emílio já na França, é fundado o Segundo Clube de Cinema de São Paulo, cujos componentes dessa vez eram de outra geração de cinéfilos. Sabendo dessa nova iniciativa, Paulo Emílio filia o Segundo Clube de Cinema de São Paulo à Federação Internacional dos Clubes de Cinema (FICC) e, em 1948, também à Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF), da qual em 1951 Paulo Emílio torna-se vice-presidente.[10]
Com a recém-inauguração do Museu de Arte Moderna de São Paulo, a nova Filmoteca do museu junta-se ao Segundo Clube de Cinema de São Paulo, a fim de melhor coletar os recursos financeiros para a sobrevivência das iniciativas. O conservador-chefe da nova Filmoteca foi Paulo Emílio, que assumiu o cargo assim que voltou da França, em 1954. Além disso, o envio de filmes vindos da FIAF deram o pontapé inicial ao núcleo do acervo que constituiria a Cinemateca Brasileira, que se desliga da Filmoteca em 1956 para transformar-se em uma sociedade civil sem fins lucrativos.[14]
A relação de Paulo Emílio com a Cinemateca Brasileira foi de enorme afeição, conforme o próprio afirma em entrevista a Carlos Reichenbach, Eder Mazzini e Inácio Araújo: “A pergunta sobre minha entrada na Cinemateca dá ideia de que a Cinemateca existia antes de mim. E de que eu entrei nela. Você, pegando pessoas como o Almeida Salles, eu, Caio Scheiby, Rudá de Andrade: a Cinemateca é inseparável das nossas biografias”. Além disso, familiares e amigos afirmam que todos os incêndios na Cinemateca afetaram Paulo profundamente.[15]
Suplemento Literário, Festival de Brasília e cursos de Audiovisual
Paulo Emílio Sales Gomes contribuiu semanalmente com artigos no Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. A coluna permaneceu ativa durante quase dez anos, terminando em dezembro de 1965. Seus textos foram publicados integralmente em dois volumes no livro "Paulo Emílio: crítica no Suplemento Literário" (Embrafilme/Editora Paz e Terra, 1982). Entre 2015 e 2017, esses textos foram republicados em diferentes livros editados pela Companhia das Letras e com organização de Carlos Augusto Calil.[16]
Após a inauguração de Brasília, em 1960, Paulo Emílio muda-se para a nova capital do país.[17] Em 1964, ano do Golpe militar de 1964, Pompeu de Sousa convida Paulo Emílio, Jean-Claude Bernardet e Nelson Pereira dos Santos, dentre outros, para criar o curso de Audiovisual da Universidade de Brasília, o primeiro do tipo no Brasil. No ano seguinte, o curso fora dissolvido devido ao tenso período político da época instaurado pelo governo militar, que cassou quinze professores da universidade – em solidariedade, os outros professores demitiram-se. No mesmo ano de 1965, Paulo Emílio foi escolhido pela Fundação Cultural do Distrito Federal para integrar uma comissão de intelectuais que fundariam a 1ª Semana do Cinema Brasileiro, que dois anos depois seria renomeado para Festival de Brasília, o mais antigo do país. Por decisão de Paulo Emílio, o júri foi composto por pessoas não necessariamente ligadas ao cinema, como deputados federais, conforme afirmou: “O cinema é interessante demais para ficar a mercê de seus críticos”. Em homenagem ao professor, em 2016, ano do centenário de nascimento de Paulo, o Festival de Brasília criou como homenagem a figuras da área a medalha "Paulo Emílio Sales Gomes", que foi dada a Jean-Claude Bernardet.[18][19][20]
Depois do fracasso em Brasília, Paulo, Bernardet e Rudá de Andrade criam em 1966 o curso de cinema da então Escola de Comunicações Culturais, depois rebatizada Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo.[21] Paulo Emílio seria docente de História Geral do Cinema e, posteriormente, História do Cinema Brasileiro, o qual lecionaria até o final de sua vida.[22]
1967 é o ano que escreve seu primeiro roteiro de cinema, baseado no romance realista Dom Casmurro, do escritor carioca Machado de Assis. O roteiro foi feito a pedido do cineasta Paulo César Saraceni e com a ajuda da escritora Lygia Fagundes Telles, sua esposa desde 1962.[23]
Investida na literatura e anos finais
Durante a década de 1970, Paulo Emílio entra na fase que ele mesmo chamaria de "jacobina". Durante esse período, aprofunda seu gosto e estudos pelo cinema brasileiro, ignorando as produções estrangeiras. Em 1973, seu jacobinismo ganha corpo em "Cinema: trajetória no subdesenvolvimento", ensaio no qual recapitula a formação do cinema brasileiro sob uma análise histórico-social.
No ano anterior, em 1972, apresenta e defende sua tese de doutorado sobre o cineasta brasileiro Humberto Mauro, que posteriormente seria transformada no livro "Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte" (Edusp/Perspectiva, 1974). Em 1974, por razões políticas da censura militar, a Escola de Comunicações e Artes resiste a renovar o contrato de docente de Paulo, o que gera atrito entre ambos, mas resulta na continuidade do historiador e crítico na escola.[24]
Nesse meio-tempo, escreve "Três Mulheres de Três PPPês", romance em três novelas que lhe renderia elogios em 1977, data em que o livro foi publicado. O ensaísta Roberto Schwarz considerou-o como "a melhor prosa brasileira desde Guimarães Rosa".[25] O Prêmio Jabuti deu ao livro e a Paulo a láurea de melhor literatura adulta de um autor revelação.[26]
Em setembro do mesmo ano de 1977, aos sessenta anos de idade, Paulo Emílio Sales Gomes sofre um ataque cardíaco fulminante.
Legado crítico
O legado crítico de Paulo Emílio Sales Gomes constitui-se sobretudo por sua defesa do Cinema Brasileiro. Republicado diversas vezes desde seu lançamento em 1973, seu ensaio "Cinema: trajetória no subdesenvolvimento" estuda o caminho percorrido pelo cinema brasileiro desde o seu início até a década de 1960, estabelecendo Paulo Emílio como o "fundador do ensaio cinematográfico".[27]
Seus artigos do Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo também tiveram grande papel na constituição do legado crítico do historiador. Entre o período de 1956 e 1965, textos diversos sobre Charlie Chaplin, cinema russo e chanchada, dentre outros, compõem um arquivo literário de época bastante valioso para a crítica cinematográfica brasileira, marcando um estilo que seria repetido dali em diante.[27]
Além disso, suas biografias sobre Jean Vigo e Humberto Mauro são referência graças à meticulosa pesquisa histórica feita por Paulo Emílio. E, por fim, sua batalha pela Cinemateca Brasileira e por políticas culturais que garantissem a sobrevivência do Cinema Brasileiro frente às produções estrangeiras.[28]
Cinema: trajetória no subdesenvolvimento
Ao longo de "Cinema: trajetória no subdesenvolvimento", Paulo Emílio recapitula a formação do Cinema do Brasil, separando-a por cinco décadas, de 1896 a 1966. A seguir, no capítulo que leva o nome ao ensaio, o autor discute a formação dos cinemas norte-americano, japonês e europeu (não-subdesenvolvidos) com as obras hindu, árabes e brasileiras (subdesenvolvidas). No caso brasileiro, utiliza-se uma análise histórica para estudar a formação de uma identidade cultural nacional, o que explicaria as características de nosso cinema. Nesse sentido, afirma sobre o povo brasileiro: "não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de uma cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é" (Paz e Terra, 1996). Esse cenário propicia o que Paulo Emílio chama de "incompetência criativa em copiar", na qual o cineasta brasileiro não obtém sucesso em copiar o cinema estrangeiro a partir de seus padrões fílmicos.
A "incompetência criativa" continua até hoje a ser tema de debate entre especialistas em cinema brasileiro, sendo as chanchadas e pornochanchadas o maior exemplo do fenômeno observado por Paulo Emílio Sales Gomes.[29][30]
Influência sobre o Cinema Novo
A relação de Paulo Emílio com o Cinema Novo foi de distância, ainda que o historiador e crítico tenha sido considerado o "pai" do movimento cinematográfico brasileiro. Considerado seu maior cineasta, Glauber Rocha afirma: a “Cinemateca de São Paulo era a Catedral, Paulo Emílio Salles Gomes, o Papa, enquanto os cardeais e padres brigavam nos bares e clubes de cinema das províncias”.[31] Em outra frase atribuída a Glauber, Humberto Mauro (redescoberto por Paulo Emílio) seria o avô e Hollywood, a mãe: “O cinema novo é um movimento cultural estruturado por vínculos de amizade ao cinema, tribalista, patriarcalista, Historificado: H. Mauro (o avô) – Paulo Emílio (o pai) – o cinema novo: netos e filhos. A mãe rejeitada é Roliude”.[30]
No entanto, Paulo Emílio nunca "retribuiu", pois pouco dedicou-se a estudar o movimento, que ganhava o mundo com os festivais Cannes com Deus e o Diabo na Terra do Sol e Berlim com Os Cafajestes a partir da década de 1960. Pelo contrário, Paulo Emílio foca no cinema marginal e nas pornochanchadas, a declarado contragosto de Glauber Rocha.[32]