Livre circulação dos trabalhadores na União Europeia

A livre circulação dos trabalhadores é um capítulo político do acervo comunitário (acquis communautaire) da União Europeia. A livre circulação dos trabalhadores significa que os cidadãos de qualquer estado-membro da União Europeia podem trabalhar noutro estado-membro nas mesmas condições que os cidadãos desse estado-membro em particular. Em concreto, nenhuma discriminação com base na nacionalidade é permitida.[1][2] Faz parte da livre circulação de pessoas e é uma das quatro liberdades económicas: livre circulação de bens, serviços, trabalho e capital. O artigo 45.º do TFUE (ex-artigos 39.º) estabelece que:[2]

"Artigo 45.º

  1. A livre circulação dos trabalhadores fica assegurada na União.
  2. A livre circulação dos trabalhadores implica a abolição de toda e qualquer discriminação em razão da nacionalidade, entre os trabalhadores dos Estados-Membros, no que diz respeito ao emprego, à remuneração e demais condições de trabalho.
  3. A livre circulação dos trabalhadores compreende, sem prejuízo das limitações justificadas por razões de ordem pública, segurança pública e saúde pública, o direito de:
    • a) Responder a ofertas de emprego efetivamente feitas;
    • b) Deslocar-se livremente, para o efeito, no território dos Estados-Membros;
    • c) Residir num dos Estados-Membros a fim de nele exercer uma atividade laboral, em conformidade com as disposições legislativas, regulamentares e administrativas que regem o emprego dos trabalhadores nacionais;
    • d) Permanecer no território de um Estado-Membro depois de nele ter exercido uma atividade laboral, nas condições que serão objeto de regulamentos a estabelecer pela Comissão.
  4. O disposto no presente artigo não é aplicável aos empregos na administração pública."[2]

O direito à livre circulação tem efeito direto tanto "horizontal" quanto "vertical", de tal modo que um cidadão de qualquer estado-membro da UE pode invocar este direito, sem mais, num tribunal ordinário, contra outras pessoas, tanto governamentais quanto não-governamentais.[3][4]

História

O Tratado de Paris (1951)[5] que instituiu a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) estabeleceu o direito à livre circulação dos trabalhadores nestas indústrias, e o Tratado de Roma (1957)[6] concedeu o direito à livre circulação dos trabalhadores dentro da Comunidade Económica Europeia (CEE), a ser implementado em 12 anos a partir da data de entrada em vigor do tratado. O primeiro passo para a implementação da livre circulação dos trabalhadores foi o Regulamento do Conselho n.º 15 de 1961, que entrou em vigor a 1 de setembro de 1961.[7] Concedeu aos cidadãos dos estados-membros o direito de trabalhar noutro estado-membro, desde que comprovadamente não houvesse cidadãos desse estado-membro disponíveis para essa vaga de trabalho em específico. O regulamento foi substituído por outro regulamento a 1 de maio de 1964, que ampliou ainda mais o direito dos trabalhadores de aceitar um emprego noutro estado-membro. Contudo, foi somente a 8 de novembro de 1968, quando o Regulamento (CEE) n.º 1612/68 entrou em vigor, que a livre circulação dos trabalhadores foi totalmente implementada nas Comunidades Europeias.[8] Através deste regulamento, o artigo original n.º 49 do Tratado de Roma (CEE) foi implementado, e todos os cidadãos dos estados-membros obtiveram o direito de trabalhar noutro estado-membro nas mesmas condições que os cidadãos desse determinado estado-membro.[9] A livre circulação dos trabalhadores foi assim concretizada antes de expirar o período de doze anos estipulado no Tratado de Roma (CEE). A 16 de junho de 2011, este regulamento foi substituído pelo Regulamento da Livre Circulação dos Trabalhadores de 2011. Na altura em que a livre circulação dos trabalhadores foi implementada nas Comunidades Europeias, o direito correspondente já existia no Benelux (desde 1960) e entre os países nórdicos (desde 1954) por meio de tratados e convenções internacionais separados.[10]

A Diretiva 2004/38/EC sobre o direito de circular e residir livremente reúne os diferentes aspetos do direito de circulação num único documento, substituindo, inter alia, a Diretiva 1968/360/EEC. Também esclarece questões processuais e reforça os direitos dos familiares de cidadãos europeus que usufruem da liberdade de circulação. Segundo a página em linha (online) oficial do Parlamento Europeu, a explicação da liberdade de circulação é a seguinte:[11]

A liberdade de circulação e residência para as pessoas na UE é a pedra angular da cidadania da União, que foi estabelecida pelo Tratado de Maastricht em 1992. A sua implementação prática na legislação da UE, porém, não tem sido simples. Em primeiro lugar, envolveu a eliminação gradual das fronteiras internas sob os acordos de Schengen, inicialmente em apenas alguns Estados-Membros. Atualmente, as disposições que regem a livre circulação de pessoas são estabelecidas na Diretiva 2004/38/CE sobre o direito dos cidadãos da UE e os seus familiares de circular e residir livremente no território dos Estados-Membros. Contudo, a implementação desta diretiva continua a enfrentar muitos obstáculos.[11]

Definição do conceito de trabalhador

O significado do conceito de "trabalhador" é uma questão da legislação da União Europeia.[12] "A característica essencial de uma relação de emprego, porém, é que, durante um certo período de tempo, uma pessoa presta serviços para e sob a direção de outra pessoa em troca da qual recebe uma remuneração".[13]

  • Finalidade: de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu de Justiça, o direito à livre circulação dos trabalhadores aplica-se independentemente da finalidade do trabalhador aquando da aceitação de um emprego no estrangeiro,[14] desde que o trabalho não seja prestado apenas como meio de reabilitação ou reintegração de trabalhadores problemáticos na sociedade.[15]
  • Compromisso de tempo: o direito de livre circulação aplica-se tanto ao trabalho a tempo parcial (part-time) quanto ao trabalho a tempo inteiro (full-time), desde que o trabalho seja efetivo e genuíno,[14] e não seja de pequena escala, natureza irregular ou duração limitada ao ponto de ser puramente marginal e acessório.[14][16]
  • Remuneração: um salário é uma pré-condição necessária para que a atividade constitua trabalho, mas o valor não é importante. O direito à livre circulação aplica-se quer o trabalhador necessite ou não de assistência financeira adicional do estado-membro para onde se desloca.[17] A remuneração pode ser uma quid pro quo (contrapartida) indireta (por exemplo, alimentação e alojamento) em vez de uma estreita consideração pelo trabalho.[18]
  • Direção de outrem: quando o trabalhador é independente (autoempregado ou autónomo), pode beneficiar da liberdade de prestação de serviços e da liberdade de estabelecimento.[10]

Extensão do direito à livre circulação

O direito à livre circulação aplica-se sempre que uma relação jurídica de trabalho é celebrada ou entre em vigor no território da Comunidade Europeia.[19][20] A abrangência jurídica preciso deste direito à livre circulação dos trabalhadores foi definido pelo Tribunal Europeu de Justiça e por diretivas e regulamentos europeus. Subjacente a estas normas jurídicas existe uma tensão "entre a imagem do trabalhador comunitário como uma unidade de produção móvel, que contribui para a criação de um mercado único e para a prosperidade económica da Europa" e a "imagem do trabalhador como um ser humano, que exerce o direito pessoal de viver noutro país e de nele trabalhar sem discriminação, a fim de melhorar o nível de vida da sua família”.[21]

Períodos de Transição para os trabalhadores dos novos estados-membros da UE

No Tratado de Adesão de 2003, no Tratado de Adesão de 2005 e no Tratado de Adesão de 2011, existe uma cláusula sobre o Período de Transição antes que os trabalhadores dos novos estados-membros se possam tornar empregados em condições iguais e não discriminatórias nos estados-membros mais antigos. Os antigos estados-membros devem exercer o seu direito de impor este período de transição por, no mínimo, 2 anos, devendo depois decidir prorrogá-lo por mais 3 anos e, por fim, se houver suspeitas de que a mão-de-obra dos novos estados membros ainda prejudica o mercado de trabalho nos antigos estados-membros, baixando o valor do trabalho e fazendo concorrência desleal aos cidadãos dos antigos estados-membros, então o período de transição deve ser prorrogado pela última vez por mais 2 anos.[22]

De acordo com o princípio da reciprocidade, os novos estados-membros têm o direito de impor restrições a todos os estados-membros que introduziram restrições e períodos transitórios aos seus cidadãos. Pese embora, o efeito prático desta medida seja inconsequente em virtude dos novos estados-membros serem, regra geral, países com economias mais débeis e sem atratividade para os trabalhadores dos antigos estados-membros, a Croácia decidiu aplicar esta regra após a sua admissão à UE.[23]

Saída da União Europeia

O Reino Unido deixou formalmente a UE a 31 de janeiro de 2020, após uma votação pública realizada em junho de 2016. Contudo, o país pode-se beneficiar de um período de transição para dar tempo de negociar um acordo comercial entre o Reino Unido e a UE. O Acordo de Comércio e Cooperação UE-Reino Unido (EU–UK Trade and Cooperation Agreement, TCA) foi concluído a 24 de dezembro de 2020. A 1 de janeiro de 2021, a livre circulação de pessoas entre ambas as Partes deste Acordo cessou, porque não se encontra incorporada no TCA nem no Acordo de Saída do Brexit.[24]

Liberdade de circulação no Espaço Económico Europeu (EEE)

Os cidadãos dos estados-membros do Espaço Económico Europeu (que inclui a UE) têm o mesmo direito de livre circulação no EEE que os cidadãos da UE dentro da União. Para além disso, a União Europeia e a Suíça concluíram um acordo bilateral que prevê o mesmo efeito. Os estados-membros do EEE fora da UE (Noruega, Islândia e Liechtenstein) e a Suíça são tratados como "antigos estados-membros" para efeitos dos Tratados de Adesão dos novos estados-membros da UE, para que lhes possam impor os referidos Períodos de Transição 2+3+2.[25][26]

Suíça

A Suíça inicialmente concedeu a liberdade de circulação aos cidadãos do EEE de 2005 a 2011. Entretanto reimpôs brevemente as restrições entre 2012–2013, mas suspendeu-as novamente em 2014. A aprovação num Referendo Popular de 2014 da Iniciativa Popular Federal "Contra a Imigração em Massa", obrigou o Governo suíço a impor quotas permanentes para as permissões (autorizações) de residência/trabalho concedidas para os cidadãos de todos os países do EEE, exceto o Liechtenstein, a partir de 2017, o mais tardar.[27][28][29] Entretanto, a 22 de dezembro de 2016, a Suíça e a UE concluíram um acordo segundo o qual qualquer nova lei suíça (em cumprimento do Referendo Popular soberano) pode exigir que os empregadores suíços deem prioridade aos candidatos a emprego com residência permanente na Suíça (cidadãos suíços e estrangeiros registados em agências de emprego suíças), mas não limita a livre circulação dos trabalhadores da UE para a Suíça.[30]

Liechtenstein

O Liechtenstein foi originalmente autorizado pelo Protocolo 15 do Acordo EEE a limitar a livre circulação de pessoas de outros estados do EEE até 1 de janeiro de 1998[31] e, de seguida, a medida foi submetida a uma revisão que resultou numa declaração do Conselho do EEE[32] que possibilitou ao Liechtenstein limitar indefinidamente a livre circulação de pessoas de outros estados do EEE, nos termos do artigo 112.º do Acordo EEE. Atualmente, o Liechtenstein impõe quotas para todos os cidadãos do EEE (emitindo, no máximo, 56 autorizações de residência por ano)[33][34] e uma quota separada para os cidadãos suíços (mais umas 12 autorizações de residência por ano).[33]

Resumo

Estabelecimento dos direitos dos cidadãos de cada estado-membro do EEE para trabalhar em cada outro estado-membro do EEE
Os cidadãos de →

podem ser empregues em ↓desde ↘

Membros da União EuropeiaOutros membros do EEESuíçaReino UnidoOs cidadãos de ←

podem ser empregues em ↓desde ∠

ÁustriaBélgicaBulgáriaCroáciaChipreChéquiaDinamarcaEstóniaFinlândiaFrançaAlemanhaGréciaHungriaIrlandaItáliaLetóniaLituâniaLuxemburgoMaltaPaíses BaixosPolóniaPortugalRoméniaEslováquiaEslovéniaEspanhaSuéciaIslândiaLiechtensteinNoruega
Áustria1994201420202004201119942011199419941994199420111994199420112011199420041994201119942014201120111994199419941995199420041994Áustria
Bélgica[a]1994201420152004200919732009199419681968198120091973196820092009196020041960200919862014200920091986199419941995199420041973Bélgica
Bulgária2007200720132007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007Bulgária
Croácia[35][36][37]2020201520132015201320132013201320152015201520132013201520132013201520182018201320132013201320182015201320152018201420222018Croácia
Chipre2004200420072015200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042007200420042004200420042004200420052004Chipre
Chéquia2004200420072013200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042007200420042004200420042004200420052004Chéquia
Dinamarca[b]1994197320092013200420092009195419731973198120091973197320092009197320041973200919862009200920091986195419541995195420041973Dinamarca
Estónia2004200420072013200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042007200420042004200420042004200420052004Estónia
Finlândia[b]1994199420072013200420061954200619941994199420061994199420062006199420041994200619942007200620061994195419541995195420041994Finlândia
França1994196820142015200420081973200819941968198120081973196820082008196820041968200819862014200820081986199419941995199420041973França
Alemanha1994196820142015200420111973201119941968198120111973196820112011196820041968201119862014201120111986199419941995199420041973Alemanha
Grécia1994198120092015200420061981200619941981198120061981198120062006198120041981200619862009200620061986199419941995199420041981Grécia
Hungria2009200920092013200420042009200420062008200920062004200620042004200720042007200420062009200420042006200420062009200620092004Hungria
Irlanda[c]1994197320122013200420041973200419941973197319812004197320042004197320041973200419862012200420041986199419941995199420041923Irlanda
Italy1994196820122015200420061973200619941968196819812006197320062006196820041968200619862012200620061986199419941995199420041973Itália
Letónia2004200420072013200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042007200420042004200420042004200420052004Letónia
Lituânia2004200420072013200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042007200420042004200420042004200420052004Lituânia
Luxemburgo[a]1994196020142015200420071973200719941968196819812007197319682007200720041960200719862014200720071986199419941995199420041973Luxemburgo
Malta2004200420142018200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042014200420042004200420042004200420052004Malta
Países Baixos[38][a]1994196020142018200420071973200719941968196819812007197319682007200719602004200719862014200720071986199419941995199420041973Países Baixos
Polónia2007200720072013200420042007200420062007200720062004200420062004200420072004200720062007200420042006200420062007200620072004Polónia
Portugal1994198620092013200420061986200619941986198619862006198619862006200619862004198620062009200620061986199419941995199420041986Portugal
Roménia2007200720072013200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007200720072007Roménia
Eslováquia2004200420072013200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200420042004200720042004200420042004200420052004Eslováquia
Eslovénia2007200720072018200420042007200420062007200720062004200420062004200420072004200720042006200720042006200420062007200620072004Eslovénia
Espanha1994198620092015200420061986200619941986198619862006198619862006200619862004198620061986201420062006199419941995199420041986Espanha
Suécia[b]1994199420072013200420041954200419541994199419942004199419942004200419942004199420041994200720042004199419541995195420041994Suécia
Islândia[b]1994199420122015200420061954200619541994199419942006199419942006200619942004199420061994201220062006199419541995195420041994Islândia
Liechtenstein1995199520142018200420111995201119951995199519952011199519952011201119952004199520111995201420112011199519951995199520051995Liechtenstein
Noruega[b]1994199420122014200420061954200619541994199419942006199419942006200619942004199420061994201220062006199419541954199520041994Noruega
Suíça[d]2007200720162022200720112007201120072007200720072011200720072011201120072007200720112007201620112011200720072007200520072007Suíça
Reino Unido[c]1994197320142018200420041973200419941973197319812004192319732004200419732004197320041986201420042004198619941994199519942004Reino Unido
  nenhuma restrição à liberdade de circulação dos trabalhadores; ano do levantamento inicial das restrições.
  O Liechtenstein impõe uma quota anual permanente de permissões (autorizações) de residência emitidas, para todos os cidadãos do EEE e (separadamente) para os cidadãos suíços.
  circulação restrita de trabalhadores reintroduzida a partir de 2021; ano do levantamento inicial das restrições.
Notes

Discriminação de cidadãos europeus e acesso ao mercado

Proibição de aplicação aos empregos públicos (determinada pelo artigo 45.º, n.º4, do TFUE)

Diretivas e regulamentos

Direitos sociais

  • Processo 293/83 Gravier contra City of Liege [1985] ECR 593
  • Processo C-85/96 Maria Martinez Sala contra Freistaat Bayern [1998] ECR I-2691
  • Processo C-184/99 Rudy Grzelczyk contra Centre Public d'Aide Sociale d'Ottignes-Louvain-la-Neuve (CPAS) [2001] ECR I-6193

Ver também

Referências