Festa do Divino Pai Eterno

Movimento cultural e religioso que acontece na cidade de Trindade, Goiás

Festa do Divino Pai Eterno, também conhecida como Festa de Trindade, é um evento cultural que acontece anualmente em Trindade, Goiás. Trata-se de uma celebração religiosa tradicional que transcorre por nove dias, da última sexta-feira de junho ao primeiro domingo de julho, atraindo católicos de todo o país ao município. A festa é registro de um catolicismo popular, marcado pela romaria, sendo a maior peregrinação da Região Centro-Oeste e a segunda maior do Brasil.

Festa do Divino Pai Eterno

Romeiros visitam o Santuário Basílica do Divino Pai Eterno em Trindade.
Outro(s) nome(s)Festa de Trindade
TipoCristão
InícioÚltima sexta-feira de junho
TérminoPrimeiro domingo de julho
FrequênciaAnual

O evento tem origem na década de 1840, quando o casal de lavradores Ana Rosa e Constantino Xavier encontraram um medalhão com a figura da Santíssima Trindade no então arraial de Barro Preto e se iniciou um movimento de devoção àquela imagem. Com o passar dos anos, a romaria se consolidou e continuou se expandindo, tendo passado por um processo de institucionalização no final do século XIX e adaptando-se às ordens eclesiásticas no decorrer do século XX. Desde então, inúmeros templos de adoração ao Divino Pai Eterno foram construídos e tornaram-se símbolo da festa, como a Igreja Matriz de Trindade, o Santuário Basílica do Divino Pai Eterno e o Novo Santuário Basílica.

O sagrado e o profano confundem-se na celebração. Há, de um lado, a novena e a piedade popular, marcada pelo percurso dos romeiros pelas vias urbanas e rurais — com destaque ao desfile de carros de boi —, e, de outro, programas não religiosos, como a instalação de barracas comerciais, jogatinas e parques de diversão. Altamente rentável para a cidade de Trindade,[1] em sua maior edição, em 2019, a Festa do Divino Pai Eterno recebeu mais de 3,2 milhões de turistas.

História

Descoberta do medalhão e primeiros anos da romaria

A história da Festa do Divino Pai Eterno remonta à década de 1840, quando o casal de lavradores Ana Rosa e Constantino Xavier encontraram, às margens de um córrego no arraial de Barro Preto, atual Trindade, um medalhão com a imagem da coroação de Virgem Maria pela Santíssima Trindade.[2] A descoberta do ícone deu início a um movimento de devoção à figura do Divino Pai Eterno, que, gradativamente, se expandia e levava mais fiéis à região onde foi encontrado. O arraial estava situado no centro de Goiás e era, mais especificamente, freguesia da cidade de Campininha das Flores, que, anos depois, viria a ser Campinas, bairro de Goiânia.[3][4] Inúmeros eram os deslocamentos de carros de boi vindos do interior do estado, transportando os sertanejos rumo à casa do casal aos sábados,[5] marca da tradição rural já nos primeiros anos da romaria.[6]

Com a rápida expansão do movimento, Ana Rosa e Constantino Xavier perceberam que não havia mais como reunir todos os romeiros em sua casa. Assim, ambos construíram um rancho que abrangia o córrego onde foi descoberto o medalhão e, em 1843, foi oficialmente realizada a primeira festa.[7] A celebração, naquele ano, contou com missas e procissões, além da presença paralela do comércio, que buscava arrecadar fundos para a construção de uma capela onde permaneceria exposto o medalhão. O sagrado e o profano simultâneos — práticas religiosas e comerciais — perduraram no decorrer da história, mantendo-se como uma das principais características do evento.[6] O deslocamento ritualístico de carros de boi, as músicas interioranas e a chegada dos fiéis ajoelhados também já eram presentes na primeira edição da festa.[8]

Capela construída por Ana Rosa e Constantino Xavier em 1848. Nela, estava exposto o medalhão encontrado pelo casal.

Em 1848, o casal de lavradores conseguiu erguer a capela desejada. A princípio, a capela, às margens do curso-d'água, era coberta com folhas de buriti.[9] Tratava-se da primeira construção onde a figura da Santíssima Trindade ficaria à mostra para os devotos, transportada nas décadas seguintes para locais maiores.[10] No mesmo ano, também se iniciou outra tradição: a festa transcorreria por nove dias, finalizando no primeiro domingo do mês de julho.[11] Com esse intenso movimento de pessoas, a imagem do medalhão desgastou-se, e, em 1850, Constantino Xavier pediu ao escultor José Joaquim da Veiga Valle, de Pirenópolis, que produzisse uma réplica maior em madeira, também exposta ao público.[9]

Outra capela, de alvenaria e coberta por telhas, foi concebida em 1866.[12] Aos poucos, as construções do arraial acompanhava o crescimento do número de habitantes e de fiéis e a ampliação da romaria, por mais estradas e trilhos de Goiás, chamando cada vez mais pessoas à celebração anual.[13] A Festa do arraial da Santíssima Trindade de Barro Preto, como era conhecida, avançava na segunda metade do século XIX, sob a permanência de ritos e superstições e a tradição da caminhada pelas terras goianas, com animais arreados, rosários, cruzes, bandeiras e seguidos pelas manifestações de piedade, registro de um catolicismo popular.[14]

Institucionalização e conflitos locais

Missionários redentoristas alemães levados para o distrito de Barro Preto em 1894 para controlar as atividades religiosas.

Ao constar a propagação das práticas religiosas, inclusive a própria festa, o bispo Joaquim Gonçalves de Azevedo incentivou a construção de uma capela ainda maior em 1888, administrada por uma comissão de leigos. Esse grupo se autointitulou a Irmandade, responsável pela organização de programas festivos no arraial, como missas, novenas e feiras livres.[15] A festa, a cada ano maior, presenciava a solenidade ritual e a devoção em torno da imagem do Divino Pai Eterno ao mesmo tempo em que comércios, jogos de azar, cantorias e danças ocorriam ao ar livre.[2]

No entanto, após a nomeação do bispo Eduardo Duarte e Silva à Diocese de Goiás, a condução da festa sofreu algumas modificações. Estava por trás dessas mudanças o desejo de cristianizar a romaria e ter acesso ao dinheiro arrecadado no evento, decisões que entraram em conflito com a Irmandade e com lideranças locais.[16] Os eventos profanos e o desconhecimento da quantia movimentada pelo arraial foram a justificativa de D. Eduardo para tentar transformar a piedade popular num processo de santificação.[17]

Barro Preto insignificante arraial só era conhecido pelos muitos milagres que a simplicidade do povo, atribuía não a Deus e sim (...) aquêle grupo de pequenas imagens e até que eu lá instalace os Padres Redentoristas, não passava de um lugar onde por doze dias acodiam negociantes de todo o Estado de Goiás, boiadeiros, mascates, mulheres de má vida, circos de cavalinhos e milhares de supertições, devotos que lá iam pagar as suas promessas, não poucas vêzes feitas para obterem de Deus cousas contra a moral Cristã: Vinganças, separações de casais, adulterios e etc.!
Quanta indecência! Quanta ignorância! Quanta ofença a higiene!

— D. Eduardo Duarte e Silva[18]

Segundo o então bispo de Goiás, a dança, os jogos, as bebidas e a prostituição que marcavam a festa popular precisavam ser excluídos de uma celebração cristã e, para tanto, necessitava-se de uma extrema institucionalização, que colocava à frente da organização do evento nomes oficiais da igreja. O padre Francisco Inácio de Sousa foi nomeado por D. Eduardo para administrar a capela e os movimentos à sua volta, e missionários redentoristas naturais do estado de Baviera, na Alemanha,[19] foram levados para Goiás após uma viagem do bispo a Roma. Dentre os alemães que mais se destacaram nas missões a que foram colocados estão Antão Jorge Hechensblarkner e Pelágio Sauter, que foram figuras importantes para o levantamento de construções maiores que a capela.[20][21] Coube aos missionários, além de divulgar a voz do catolicismo aos moldes formais da igreja, controlar os cofres públicos do templo e da região.[22]

Na edição de 1896, tornou-se mais evidente as mudanças promovidas por D. Eduardo. A atuação dos missionários e padres redentoristas refletiu-se numa programação festiva que contemplava apenas o lado solene, restringindo a atividade dos comércios e, por consequência, as atividades de lazer a que estavam acostumados os romeiros.[6][23] Esse novo cenário acarretou o descontentamento daqueles que frequentavam a festa e levou a um decréscimo de participantes nos anos seguintes.[24] Além disso, as imposições do bispo também desagradaram autoridades locais e conduziram ao enfrentamento direto entre D. Eduardo e coronel Anacleto Gonçalves de Almeida.[25][26]

Por conta dos conflitos, o bispo assinou em 1900 o Interdito, que prescrevia a interrupção do evento.[27] Após pressão popular e coronelista, a decisão foi revertida em 1903, e a festa voltou a ocorrer com a presença simultânea do comércio e das práticas religiosas.[28]

Expansão e amplitude nacional

Parque de diversões erguido em uma das edições da festa nos anos 1950.

A ocupação desordenada e a população numerosa que transformaram a paisagem do pequeno arraial davam os contornos do que viria a ser a cidade de Trindade.[11] Nos primeiros anos do século XX, a festa continuou se desenvolvendo e foi essencial para a fundação do município em 1920. A Igreja Matriz de Trindade, construída em 1912, no mesmo local onde fora erguida a primeira capela com folhas de buriti, torna-se símbolo principal da peregrinação, o ponto de chegada dos romeiros que partem rumo à devoção ao Divino Pai Eterno. Cerca de 15 mil pessoas compareciam à festa nesta época.[29]

Tradicionalmente, homem e mulher sertanejos do interior de Goiás preparavam-se em maio e junho para a romaria e deslocavam-se em carros de boi pelas estradas em busca do sagrado.[2] Outros preferiam chegar à região isolados ou em grupos menores, por caminhadas ou ajoelhados sem a boiada.[27] Pouco a pouco, os modos de se chegar à atual Trindade diversificavam cada vez mais, sem perder as tradições. Nos nove dias que antecediam o primeiro domingo de julho, uma espécie de feira-festa instalava-se no território, mantendo as práticas religiosas, já centralizadas pela presença da igreja, ao lado da movimentação popular, que montava nas ruas barracas que comercializavam produtos extremamente variados, como comidas, bebidas, artigos religiosos e até eróticos.[17]

Com o crescimento da peregrinação, outra instituição foi planejada para recepcionar os romeiros. Em 1946, foi lançada a pedra fundamental do Santuário Basílica do Divino Pai Eterno por ordens do arcebispo Emanuel Gomes de Oliveira; as obras, no entanto, começaram apenas em 1957 por determinação de D. Fernando Gomes dos Santos.[30] Planejada para receber 10 mil pessoas, a igreja foi inaugurada em 1974, doze anos após o início de sua construção.[31] Percebe-se, portanto, a adaptação da festa às ordens eclesiásticas no decorrer do século XX, mantendo o catolicismo popular. Neste período, muitas foram as associações religiosas firmadas em Trindade, como o Apostolado da Oração, a União Filhos de Maria e a Congregação Mariana.[31]

No século XXI, a festa passou a receber mais destaque no âmbito nacional, atraindo turistas de outros estados e sendo noticiada e televisionada no Brasil e internacionalmente. Tendo em vista o crescimento exponencial, em 2004, autoridades religiosas fundaram a Associação Filhos do Pai Eterno (Afipe),[32] interessada em agrupar devotos e disseminar práticas cristãs por meio de vários projetos, como a TV Pai Eterno.[33] Em 2016, procurou-se recolher assinaturas de romeiros para a visita do papa Francisco ao Santuário.[34] Em 2020, após décadas ininterruptas de realização, o evento foi cancelado em decorrência da pandemia de COVID-19.[35] No ano seguinte, em 2021, com a permanência do período pandêmico, foi realizada virtualmente com programação reduzida.[36]

Programação

Inúmeras missas são realizadas no Santuário Basílica do Divino Pai Eterno durante a novena.

A cada ano, as atrações da Festa do Divino Pai Eterno modificam-se, mas algumas tradições são mantidas. Quanto às práticas religiosas, destaca-se a novena, conjunto de orações que se estendem por nove dias — neste caso, da última sexta-feira do mês de junho até o primeiro domingo de julho —, com missas em diferentes horários.[37][38] A romaria, peregrinação católica, também é uma das principais características do evento. Diversos romeiros chegam de diferentes regiões do país à cidade, tendo como destino templos como a Igreja Matriz de Trindade e, principalmente, o Santuário Basílica do Divino Pai Eterno.[39] Embora muitos sejam os meios de se chegar a Trindade, o percurso a pé pelas inúmeras vias urbanas e rurais de Goiás continua sendo o mais marcante, em especial atravessando a GO-060, popularmente conhecida como Rodovia dos Romeiros,[40] via que conecta Goiânia a Trindade.[41]

Uma das maneiras mais tradicionais de comparecer à festa é por meio de carros de boi. Desde o início da celebração, partir pelas estradas por vários dias exigia dos romeiros que procurassem formas de carregar abastecimentos, e a prática de arrear animais foi a alternativa mais estabelecida.[42] Durante os nove dias de festa, centenas de carros de boi desfilam pelas ruas da cidade rumo ao Carreiródromo de Trindade, localizado no Parque Municipal Lara Guimarães,[43][44] costume reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como Patrimônio Cultural do Brasil.[45][46] Além do desfile, outras atrações ocorrem neste palco, como quadrilhas juninas e espetáculos musicais, com destaque aos cantores e às duplas sertanejas.[47][48]

Além das práticas religiosas, barracas de comércio são instaladas nas ruas de Trindade durante a festa.

É comum também a instalação de barracas de comércio nas principais vias onde atravessam os romeiros. A composição de uma feira-festa é marcante no evento desde as primeiras edições, o que compreende a união do sagrado com o profano. Os produtos comercializados são bastante diversificados, e as barracas são montadas tanto por habitantes de Trindade como por turistas de outras cidades que se mobilizam pela projeção comercial disponibilizada.[49][50][51] Destaca-se principalmente barracas de comidas e bebidas,[52] com a venda de pastéis, churros e crepes, além de típicas da festa junina, como canjica e quentão, e típicas da culinária goiana, como pamonha e empadão. Existem também aquelas destinadas à venda de peças de vestuário, utilidades domésticas, produtos religiosos e brinquedos infantis.[53][54] Ainda que a movimentação seja maior nos nove dias de festa, algumas barracas costumam aparecer de dez a quinze dias antes do início do evento, permanecendo até uma semana após seu término.[55]

No evento, existem outros programas festivos, predominantemente noturnos, que se instalam nas ruas da cidade. Em algumas das barracas, são montados jogos diversos, seja para o público infantil, seja para o público adulto, como fliperama, bingo e tiro ao alvo. Há um parque de diversões que anualmente se estabelece na região central de Trindade, recebendo principalmente crianças e adolescentes.[56][57]

Alcance e repercussão

A Festa do Divino Pai Eterno e a história de Trindade confundem-se. O percurso constante em torno do antigo arraial de Barro Preto teve um impacto direto no modo geográfico como o município goiano se dispõe.[58] Às margens do córrego, foram erguidos os primeiros edifícios que fortaleceriam a estrutura da cidade formalmente reconhecida desta forma em 1920. No decorrer dos anos, o trajeto dos romeiros continuou influenciando a ordenação da malha urbana de Trindade, com destaque ao desenvolvimento da região leste em intensa conurbação com Goiânia, principal caminho em direção à festa.[59]

A expansão territorial do município está relacionada ao alcance cada vez maior que o evento atinge. Enquanto nos primeiros anos tratava-se de uma celebração local e restrita às comunidades do interior de Goiás, a festa chegou a receber mais de 3,2 milhões de romeiros na década de 2010.[60] Já no século XX, a celebração consolidou-se como o maior evento religioso da Região Centro-Oeste e o segundo maior do Brasil, atrás apenas da estância turística de Aparecida.[61] Registra-se que, em 1911, 5 mil pessoas compareceram ao evento, número que se elevou nas décadas seguintes: 20 mil em 1922; 100 mil em 1960 e 200 mil em 1970.[62][63][64]

Referências

Bibliografia